A Cabeça do Brasileiro - resenha



Ainda o velho dilema: quem são esses brasileiros?

Resenha do livro:
ALMEIDA, Alberto Carlos. A cabeça do brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2007 (versão resumida publicada no Jornal do Brasil, caderno de Idéias e Livros. dez.2007)

Quem somos nós, brasileiros? Essa é uma pergunta clássica da teoria social brasileira. Clássica porque ao longo de muitos anos ela foi considerada central para compreender as possibilidades da ação política dos brasileiros. Vários critérios já foram mobilizados para respondê-la. Primeiro a idéia do português de segunda linha, depois a mistura virtuosa de raças e mais tarde um conjunto amplo de valores sistematizados por teorias sociais.

Mário de Andrade criou um tipo de brasileiro que se tornou célebre: o Macunaíma e sua eterna “preguiça”. O brasileiro, aí, é um tipo avesso à ética do trabalho e do capitalismo. Monteiro Lobato (1997) imortalizou outro tipo em sua literatura: o brasileiro “Jeca Tatu”, célebre pela sua ignorância e atraso. Esse tipo, mais tarde, foi popularizado pelo cinema de Mazzaropi, a partir dos anos 50. Sérgio Buarque de Holanda é responsável pela descrição do brasileiro como um tipo intimista, familiar, plenamente favorável à cooperação social, ao convívio “cordial”. O brasileiro, segundo ele, é em tudo avesso a formalismos, dogmatismos, ritualismos, hierarquia, regras ou convenções que distanciem as pessoas (HOLANDA, 1995: 147-151). Roberto DaMatta celebrizou o tipo que pouco se individualiza, que confia na sua casa, num mundo de relações primárias e avessa à separação do setor público e privado (DaMatta, 1997: 26-245). Nelson Rodrigues deu-nos a visão do tipo com "complexo de vira-latas", uma inferioridade psicológica que o brasileiro se colocava, voluntariamente, em face do resto do mundo, em todos os setores e, sobretudo, no futebol (RODRIGUES, 1993: p.51)

Muitas dessas interpretações ensaístas sobre o Brasil e o brasileiro foram refutadas, e outras tantas confirmadas, por estudos empíricos mais abrangentes. Exemplo disso foi a pesquisa feita, pelo instituto de pesquisas Vox Populi, em outubro de 1995, a pedido de Revista VEJA. Uma extensa investigação sobre como o brasileiro via o Brasil foi publicada em 10 de janeiro de 1996 com o título, “O brasileiro segundo ele mesmo”, e mostrou, entre outras coisas, que 84% das 2.000 pessoas entrevistadas em 25 Estados, sentiam orgulho de ser brasileiros, que 58% acreditavam que o brasileiro está mudando, de malandro e preguiçoso, para sério e trabalhador, que para 34% era possível ser feliz sem ter religião e que para 42% a família estava perdendo importância. O cidadão de 1996 era otimista, mas muito preocupado. O seu primeiro pensamento a respeito do Brasil referia-se à fome e à miséria. Depois, vinha-lhe à cabeça a corrupção e a crise econômica. Parece que, a partir daí, o Brasil estaria vivendo uma mudança, uma transição, tudo envolvido por um processo de autocrítica dirigido a seus defeitos. Os brasileiros sinalizavam querer mudança, prosperidade e um país mais justo.

Afinal, quem somos nós, quais são os valores dos brasileiros dez anos depois dessa última pesquisa?

A mais recente tentativa de resposta abrangente para esta pergunta vem de Carlos Alberto Almeida, no livro A cabeça do brasileiro, publicado pela Editora Record em 2007. Segundo ele, tais perguntas conduzem a duas respostas, pois a sociedade brasileira se divide em dois grupos com entendimentos bastante diferentes a respeito do Brasil e de si mesmos: de um lado estão os habitantes das capitais, jovens, com elevada escolaridade e economicamente ativos. De outro, os interioranos, mais idosos, de pouca escolaridade e economicamente inativos. O Brasil, diz, é um país dividido em suas noções sobre si e sobre o que é certo e errado. E o que separa esses grupos é a educação superior, motor dos desníveis de renda, de poder e de prestígio.

Não obstante a aparência, este livro não foi escrito para produzir novas teses, nem para dialogar com toda a tradição teórica que o antecede. Quer verificar, qualificar ou refutar as teses de Roberto DaMatta. Entretanto, o que faz, realmente, é confirmá-lo: “nossa pesquisa mostrou que Roberto da Matta está essencialmente correto. O Brasil é hierárquico, familista, patrimonialista e aprova tanto o jeitinho quanto um amplo leque de comportamentos similares. Porém uma qualificação precisa ser feita: o país não é monolítico, é uma sociedade dividida entre o arcaico e o moderno, diz às páginas 275. Não somos “um” país, mas “dois”: o dos valores arcaicos e o dos valores aceitos nas democracias capitalistas ocidentais mais estáveis.

Seguindo a evolução dos capítulos do livro, na cabeça do brasileiro há o seguinte:

Jeitinho. O “jeitinho”, para os brasileiros, não é favor, nem corrupção, tanto que só metade dos brasileiros o reprova.

Desigualdade. Na cultura nacional é normal haver superior e inferior em tudo --- e o primeiro sempre deve ter mais direitos.

Confusão entre esfera pública e privada. O capítulo compara “as práticas políticas nacionais com o critério liberal de ação pública” (p.97), para saber se o patrimonialismo é restrito a uma elite ou se é mais amplo. O estudo revela que os brasileiros aceitam a confusão entre interesses públicos e privados e que há tolerância para o uso de bens públicos para fins particulares (patrimonialismo). Foi constatado também que a tolerância com o patrimonialismo é maior entre os menos escolarizados e entre os nordestinos. Escândalos e corrupção irritam os mais jovens; os mais velhos são mais tolerantes. Toda a sociedade, e não só as elites, convive bem com a corrupção e com o patrimonialismo.

Só quem tem educação superior acredita que controla seu destino. Um em cada três adultos acredita que Deus decide nosso destino. Apenas 14% acreditam que têm capacidade plena de definir sua própria vida. A mentalidade se torna menos fatalista, no entanto, à medida que sobe o nível educacional: 47% dos que atingiram níveis superiores de educação acreditam que, embora o destino seja fruto da decisão divina, muita coisa pode ser mudada pelo homem.

Sexualidade: na teoria, a prática é outra. A pesquisa informa que é “enorme o conservadorismo do brasileiro quando o assunto é sexo” (p.152). Mas “o Brasil comporta dois países, o dos que têm uma visão mais liberal sobre o sexo, grupo ao qual pertencem os supostos formadores de opinião que, em algumas situações, definem o conteúdo da mídia; e dos conservadores, formados por pessoas de escolaridade mais baixa (p.174).

A família é o porto seguro, pois a maioria robusta (85%) dos brasileiros confia mesmo é na sua família. Apenas 15% confiam na “maioria das pessoas”; e só 30% confiam nos amigos e colegas de trabalho.

O direito de punir não deve ser só do Estado para 40% dos brasileiros: eles apóiam a aplicação não institucional de punições. O estuprador, assim, “poderia” ser estuprado na prisão e para mais de 1/3 da população é correto que a polícia agrida e torture os detentos para obter confissões de supostos crimes.

O conceito e o preconceito. Os brasileiros entendem que são brancos, pardos e pretos, e nada mais. Ser criminoso, no entanto, é algo mais associado a pardos. Os pardos e os pretos são mais associados à malandragem, a oportunidades restritas e à pobreza. Os brancos são menos associados a situações negativas e os nordestinos não são muito associados a atributos positivos. Se os brancos são os preferidos para casar e chefiar um trabalho, os pretos são preferidos quando está em jogo um emprego de confiança e a escolha de um bom vizinho. Entre as profissões, o professor de ensino médio é unanimidade. Lidera as preferências nas quatro situações pesquisadas --- para casar com filha, para dar emprego de confiança, para ser vizinho e para seu chefe (p.251). O preconceito parece diminuir com a ascensão social. Embora continuem sendo vistos como pretos ou pardos, da mesma forma como quando estavam na base da pirâmide, diminuem as resistências quando sobem alguns degraus na pirâmide social. (p.254).

O Estado não deve ser mínimo, mas este que está aí não é bom. Os brasileiros querem um Estado forte e, ao mesmo tempo, desconfiam muito do Estado que têm. Mais de 50% consideram que a justiça, previdência social, saúde, educação, serviço de esgoto, água, lixo, estradas/rodovias e bancos devem ser administrados pelo Estado. Só para 17% o governo não deve socorrer empresas em dificuldades. De um ponto de vista regional a pesquisa revela que os nordestinos são mais estatizantes do que os brasileiros das demais regiões. Há ainda diferenças em relação à renda e à escolaridade: Quanto mais elevadas, menos estatizante é o brasileiro, e vice-versa. No Brasil, então, conclui o autor, parece haver pouco espaço para uma cultura liberal, em especial no nordeste.

Apesar do amor pelo Estado, as instituições estatais não são as de maior prestígio público. Basta ver a ordem e grau de confiabilidade em instituições da sociedade brasileira que a pesquisa revelou:

Instituições muito confiáveis ou simplesmente “confiáveis”:
Igreja Católica: 60% ;
Pequenas e médias empresas: 46% ;
Policia Federal: 41% ;
Ministério Público: 30%;
Militares: 29%;
Imprensa, Justiça, Grandes Empresas: 28%;
Governo Federal: 26%;
Policia Militar: 25%;
Policia Civil: 23%;
Congresso: 14%;
Partidos políticos: 6%.

Nota crítica

Há, neste livro, 125 tabelas e 11 gráficos distribuídos em 11 capítulos. Comentários do autor acompanham cada uma das tabelas e gráficos. Duas coisas, então, devem ser bem distinguidas. De um lado, o volumoso relatório de dados coletados pelas entrevistas, acompanhado das perguntas que foram aplicadas, de outro as considerações do autor.

O livro esclarece algumas poucas coisas sobre a metodologia da pesquisa. Informa que as perguntas da Pesquisa Social Brasileira (PESB) foram retiradas do General Social Survey (GSS) da Universidade de Chicago (www.nurc.uchicago.edu) em 1990 (p.269). Depois, salienta que a metodologia foi de pesquisa de opinião, e que o entrevistado, em casos assim, usa pouco tempo refletindo sobre as perguntas. Noutras circunstâncias, diz o autor, depois de repetidas interações, é possível que as respostas pudessem ser diferentes, uma vez que que após conviver um determinado tempo com um advogado pardo, é de supor alguém possa vê-lo e até classificá-lo como branco. Na metodologia do survey, no entanto, esta hipótese não ocorre (p.259) e nem sempre as conclusões antropológicas encontram respaldo.

Parece dizer pouco para as pretensões e para importância desta obra. O livro, como um todo, poderia explicar com um pouco mais de detalhes os critérios de elaboração das perguntas e como foram apresentadas aos entrevistados. Além disso, muitos dos comentários conclusivos que acompanham as tabelas e gráficos não são, precisamente, leitura de dados apresentados: são mais proposições do que interpretações.

Para avaliar nossa mentalidade hierárquica, por exemplo, uma das perguntas foi (p.82-83): “que atitude deve ter a empregada doméstica se é convidada a assistir TV na sala junto com a patroa?”. Mas não sentar no sofá da sala, para muitas empregadas domésticas não significa considerar, necessariamente, a patroa como alguém “superior”, como concluiu o autor. Pode significar, apenas, que é preciso dar privacidade aos donos da casa.

No tópico sobre vida pública e privada há outra conclusão questionável. Segundo ela, quase ¾ da população brasileira não considera que a coisa pública merece ser cuidada por todos (p.102). Ocorre que simplesmente não há, no livro, essa pergunta, isto é, simplesmente, não foi perguntado se a coisa publica deve ser cuidada por todos. A afirmação de que ¾ discorda não é inferência objetiva dos dados coletados.

No capítulo 4 o autor informa que pouco mais de 1/3 da população considera correto que a polícia bata nos presos para obter confissões. Logo em seguida vem outra conclusão muito questionável: “Vale lembrar que o código de Processo penal brasileiro considera a tortura legal caso seja utilizada como meio para a obtenção da confissão do crime”, o que seria uma evidência confirmada por ‘sociólogos do direito’ de que as leis são o retrato da mentalidade da sociedade” (p.135). O livro não informa, porém, quem são esses ‘sociólogos do direito’ que fazem tais afirmações. E mais, essas afirmações não são verdadeiras. Primeiro, por que não se pode deduzir tal conclusão dos dados coletados para o livro. Segundo, porque no direito brasileiro, já a partir de 1940, pelo menos, a tortura era considerada qualificação agravante de homicídios. Em 1988, a Constituição Federal vedou expressamente a prática de tortura e, em 1997, a Lei 9.455/97, ainda que objeto de variadas críticas, previu a tortura como crime. As leis, nesse caso, não são o retrato da mentalidade da sociedade, como concluiu o autor.

A imprensa é avaliada contraditoriamente. Na tabela 5 do capítulo 7, a imprensa tem avaliação de 80% de ótimo e bom; na tabela 6 consta que só 28% dos brasileiros confiam na imprensa.

Além disso, é pena que o autor não tenha investido em temas já clássicos nessa investigação sobre o que é o Brasil e quais são os valores dos brasileiros, tais como a solidariedade e a visão sobre os estrangeiros, ou temas mais recentes, como a questão ambiental, a sociedade global e a televisão também não figuraram na pesquisa. Além de estarem na agenda investigativa atual das ciências sociais, são da maior relevância para conhecer “a cabeça dos brasileiros” no século XXI.

As críticas que merecem muitas das conclusões e interpretações dos dados, não invalidam a seriedade e importância da pesquisa. A Universidade Federal Fluminense, e todo o sistema universitário brasileiro precisa ter meios de continuar a investir em pesquisas como esta. Em breve poderemos ter, como já ocorre em muitos países, uma série histórica refinada que permitirá avaliar mais concretamente o que se passa “pela cabeça do brasileiro” e, afinal, saber melhor a cada época, quem somos nós e o que podemos ser.

Está claro que perguntas “provocam” respostas e que conclusões, em ciências sociais, são antes “interpretações” do que inferências formais objetivas. Este livro é uma excelente amostra de como, e por que, um estudo de opinião e quantitativo não deve ser visto como uma unidade de harmônica de informações. Seus resultados precisam de refinamentos qualitativos e interpretativos que devem ser sugeridos por novas pesquisas e pela aplicação de outras metodologias. Entretanto, quem procurar dados sobre os temas pesquisados neste livro, poderá encontrá-los em abundância nesta obra sem que o leitor, para bem aproveitá-las, precise concordar com o autor quanto ao significado dos dados nelas inscritos.

Só a pluralidade fará com que entendamos melhor o Brasil, diz o autor, acertadamente. Este survey é muito bem vindo. Agora há um primeiro trabalho acadêmico para discutir, criticar, aprofundar e continuar o processo de compreensão dos valores dos brasileiros.

Referências

CARVALHO, J.M. O Brasil e seus nomes. Revista de História da Biblioteca Nacional, RJ, n. 15, jan.2006, Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/ , acesso em: 21 de janeiro de 2008.
DAMATTA, R. Carnavais, malandros e heróis: Para uma sociologia do dilema brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1997. 350 p.
HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 220 p.
LOBATO, M. Urupês. São Paulo: Brasiliense, 1997.RODRIGUES, N. Complexo de vira-lata. In: À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol. (Org. Ruy Castro). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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