Fechar ruas sem saída: é o fim da picada.


O Projeto de lei ordinária municipal 005.00232.2007, nos termos do substitutivo geral protocolado em 29.09.2010, aprovado pela Câmara Municipal de Curitiba, em 2o turno, em 30.11.2010, pretende criar um direito de uso privilegiado de ruas sem saída. O Secretário Municipal de Urbanismo de Curitiba informou que o projeto mereceu estudos técnicos da Secretaria e que está adequado. O atual Prefeito de Curitiba, Luciano Ducci, havia oficializado entendimento de que nada teria a opor quanto ao mencionado substitutivo apresentado. Mas hoje, no inicio da tarde, vetou o projeto. E o fez muito bem.

Alguns aspectos jurídicos e políticos deveriam ser melhor ponderados pelos curitibanos para que o interesse de promover o bem-estar e a segurança dos moradores desses locais que, eventualmente serão beneficiados, possa ser compatibilizado com outros interesses coletivos.

O projeto em questão não proíbe, mas restringe alguns direitos importantes de pedestres em ruas sem saída e, para além disso, prevê que os veículos de não moradores estarão proibidos de entrar nesses espaços sem a prévia autorização da vigilância mantida pela Associação de moradores. Só veículos que prestam serviços públicos teriam acesso franqueado. O fechamento das ruas, por seus moradores, poderá ocorrer com o tipo de fecho que lhes parecer mais conveniente (cancelas, correntes, inclusive portão), desde que não promovam um fechamento permanente do espaço e que não impeçam o acesso a áreas públicas de lazer, a equipamento público ou a área institucional. Por outro lado, os passeios dessas ruas podem ser fechados.

O direito de fechar a rua não será auto-aplicável, os moradores dependem de ato administrativo autorizativo a ser emitido pelo Poder Executivo Municipal. No entanto, se a Associação de moradores reunir todos os documentos e atender todos os requisitos previstos no PL, terá direito subjetivo de fechá-la. Isso significa que esse projeto impede que o Poder Executivo avalie, após a Lei ser promulgada, a conveniência e a oportunidade do pedido em cada caso concreto. Tal juízo é vinculado uma vez que os requisitos para a concessão estão definidos na Lei. Contudo, o PL exige que o pedido seja formalizado por uma Associação de moradores, formalmente registrada, que os representará perante os órgãos municipais. A representação de todos os moradores da rua por essa entidade é presumida, já que o PL não exige que um morador formalize seu do ingresso na Associação, nem prevê número mínimo de moradores associados para que haja um critério de legitimidade representativa, como exigia, aliás, a primeira versão do PL. Cada rua poderá ter apenas uma Associação responsável. Havendo mais de uma, prevalece a que tiver maior número de moradores, qualquer número. O fechamento da rua sem saída deve ser administrado pela Associação, sem ônus para os cofres públicos.

Esse PL tem muitas surpresas. Algumas delas são incompatibilidades sérias com o texto constitucional e estatutos legais vigentes em nosso país. Vejamos algumas. O PL transfere, por exemplo, aos moradores representados, um encargo muito especial, que representa a prestação de um serviço público essencial e, por isso, indelegável da forma como pretendido: é o dever de policiar todo o espaço da rua quanto a práticas irregulares que aí possam ser cometidas. O PL quer que os moradores fiquem obrigados a denunciar práticas comerciais irregulares, edificações irregulares, obras de manutenção irregulares, etc. Uma medida exagerada e ineficaz. Alem disso, o PL institui o que chama de "taxa anual" que será cobrada da Associação. Mas não é uma taxa, a rigor. O valor a ser pago tem natureza tributária de imposto, pois é incidente sobre o valor venal dos imóveis, base de cálculo idêntica à do IPTU. A taxa em questão só poderia ser cobrada como contraprestação aos serviços administrativos de avaliação do pedido. Mas neste caso, não há qualquer contraprestação anual em face do pedido de fechamento da rua. Outro fator surpreendente diz respeito à natureza jurídica desses bens públicos e ao modo como se pretende restringir o acesso a eles. É que as ruas, até mesmo as sem saída, são definidas pelo Código Civil como bens de uso comum (assim também as praças, os rios, as praias etc.), mas o PL pretende restringir seu uso comum. Tais restrições não são impossíveis desde que haja a devida desafetação do bem, mas para além disso esse projeto de Lei pretende restringir, in abstrato, e de modo genérico, também o poder discricionário que o Poder Executivo Municipal detém de estabelecer tais condições restritivas.

Essa decisão da Câmara Municipal precisa ser melhor ponderada. É que o direito de restringir o acesso a logradouros públicos deve ser usado com mais parcimônia. Veja-se o exemplo do Decreto Municipal do Rio de Janeiro n. 23.084, de 01 de julho de 2003. Lá, o Poder Executivo Municipal pode restringir acessos às ruas, ou ampliá-los, mediante estudos específicos de cada caso. O município do RJ não retirou do Poder Executivo essa salutar prerrogativa. No caso do PL de Curitiba é exatamente isso que vai ocorrer, pois o PL fixa critérios que, uma vez atendidos, retiram do Poder Executivo o poder de decidir, no caso a caso, o que é mais conveniente para maximizar as funções sociais da cidade.Se o atual Prefeito não vê problemas nisso, não parece ser razoável que ele essa prerrogativa dos que o sucederão.

Esse PL quer resguardar o direito de inviolabilidade de domicílio e o direito de propriedade privada, direitos civis fundamentais, por certo. Mas para isso restringe a liberdade de locomoção na cidade, o acesso de pessoas a bem público de uso comum, proíbe o acesso de veículos, transfere a particulares serviços públicos essenciais, como segurança e vigilância de irregularidade comerciais e imobiliárias e institui tributos de forma inconstitucional.

É um projeto que quer restringir direitos fundamentais e promover a relativização de outros. Em contrapartida oferece mais segurança a uma minoria formada pelos moradores das 2.500 ruas sem saída. Segurança ou isolamento?

O PL precisa ser mais discutido para dar melhores contornos a esses temas. Fechar ruas não é só uma questão de segurança; é um assunto que toca também em questões de sociabilidade e de responsabilidades próprias do Estado.

Um sistema de vigilância privada e profissional desses espaços, custeados por moradores e sem a necessária intervenção do Poder Público, que aliás é prática bem conhecida e regulada, produz o mesmo efeito. Por que não optar pela solução menos gravosa aos ordenamento jurídico e aos interesses difusos e permitir que o Estado continue mantendo políticas sólidas de segurança pública?

As cidades precisam de soluções que não desvirtuem políticas públicas de bem estar e de segurança. Quando alguns são beneficiados com bens públicos, as autoridades precisam deixar claro quais são as vantagens estendidas aos demais que não foram diretamente beneficiados. A solução proposta nesse PL parece proteger, de forma desproporcional, e portanto, não razoável, os direitos individuais de alguns, e descuidar dos direitos coletivos urbanos de todos, em flagrante oposição à função social da propriedade privada, às funções sociais da cidade, à justa distribuição dos benefícios e dos ônus decorrentes da urbanização e a primazia do interesse público nas ações relativas à Política Urbana.

(Este artigo foi escrito em parceria com o Prof. Rodrigo Pironti, Doutorando em Direito Administrativo (PUC-Pr). Presidente da Comissão de Gestão Pública (OAB-Pr). Professor Universitário.)

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