Futebol, Nelson Rodrigues e a política no Brasil: o fim de um ciclo
Meu caro Jean,
Paris, Jul 2014
Na verdade, todos nós podemos aprender com os nossos erros. E eu acho que é muito bom ter ocorrido uma derrota como essa, e para uma equipe como a da Alemanha. A equipe da Alemanha é formidável. É o melhor exemplo do futebol profissional. Um bom caso para explicar aos nossos pequenos como é preciso agir, no futebol e na vida. Quando temos de fazer algo profissionalmente, é melhor fazer bem feito. Assim se faz o “bem”.
É preciso dizer, porém, que temos bons exemplos de outras Copas do Mundo, e também de nossa própria história social, sobre o que devemos - seja como time de futebol, seja como sociedade - e o que não devemos jamais fazer ou repetir. No entanto, para aprender com os erros do passado é preciso estar pronto. Consciente da realidade do que passou e ter um motivo convincente de é preciso melhorar. Essas “garotos” da atual seleção brasileira de futebol nada sabem sobre isso. Não têm consciência clara do "futebol brasileiro" como parte da nossa tradição, de nossa cultura. Agora sabemos disso.
Fazem parte de uma geração que não tem nenhuma ligação vital com o futebol. Para eles, futebol é uma profissão. Caminho para o dinheiro.
Mas eles nem sequer jogam um futebol profissional, quero dizer, eles fazem pouco, muito pouco, para que o trabalho deles seja realizado como uma equipe que objetiva, seriamente, ganhar dinheiro. Portanto, eles estão totalmente por fora. Sem ligação cultural com o Brasil, e sem profissionalismo para ganhar o dinheiro deles. Péssima paisagem.
Isso significa, entre outras coisas, que o Brasil mudou. Essa nova geração do futebol deixa ver algumas coisas importantes. As reações nas ruas mostrou, antes do início do mundial, que a Copa do Mundo já não é mais algo assim muito cobiçado pelos brasileiros. É um mero evento esportivo, um global business event. E agora, pra piorar, tivemos outra reação, graças à oportunidade de ver que esses atletas, em campo, comportarem-se como "menores incapazes". Desse modo, efetivamente, eles não tem como nos representar. Tem-se a impressão no Brasil, desde 1998, que esses jogadores, a comissão técnica e gestores dos eventos esportivos, esses que vestem a camisa da seleção brasileira de futebol, estão lá por seus próprios interesses. E isso não é nenhum vicio moral. Porém, a responsabilidade por esse constrangimento de 7x1 é, sobretudo, deles. Não é do Brasil.
No entanto, isso nos afeta, a cada um de nós.
Mas esses "menores incapazes", que parece que foram jogar um jogo real com um time adulto pela primeira vez, contra a Alemanha, em 08 de julho de 2014, ajudaram-nos a refletir, também, sobre algo muito particular, que lembra o escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, que descreveu "o complexo de inferioridade" dos brasileiros em relação a países de primeiro mundo, como um "complexo de cachorro vira-latas".
Não pude acreditar no que vi, mas essa equipe jogou com aquele "complexo de inferioridade de cães vira-latas", como o grande jornalista dos anos sessenta costumava descrever os nossos jogadores de futebol, e os brasileiros em geral, porém do período anterior ao da Copa do Mundo na Suécia, em 1958: o medo intenso, e a descrença em si mesmos diante de um grande desafio, um adversário estrangeiro, é a atitude típica rodriguiana. Eu podia ver em nossos atletas até mesmo aquela "baba bovina imaginária", sempre descrita pelo maior cronista do futebol e da brasilidade da primeira metade do século XX.
Minha filha, como muitas crianças verdadeiras (7 anos) está chateada com o "aquele Brasil". Porém, é só chateação. Mas ela vai aprender com isso. Afinal, esta não é uma guerra. Não há um colapso econômico. Não é a fome, nem é uma epidemia.
É só um soco na nossa alegria e um corte na ligação vital dos brasileiros com o futebol.
Porque o futebol brasileiro ainda é um elemento cultural, associado à nossa alegria e à improvisação da vida cotidiana. É como o Samba! É algo como o jazz é para a cultura negra dos Estados Unidos.
A propósito, eu li hoje, um comentário crítico escrito por um jornalista que afirmou que "o jogo bonito acabou. Resta apenas o futebol-samba". Nada poderia estar mais errado. Quem disse que permanece "apenas o futebol-samba", não sabe nada da cultura brasileira, e não sabe nada sobre a relação entre o futebol e a cultura brasileira. Pode explicar apenas a superfície das coisas. O que estava faltando ontem foi precisamente o elo entre o esporte e a vida, que sempre pulsou com o samba e o futebol.
O que nós tivemos a oportunidade de assistir ontem não tem nada a ver com isso. Não houve harmonia. Era feio. Muito estranho para todos nós.
No entanto, eu não subestimaria a capacidade das gerações presentes e futuras de superar e recuperar sua tradição. Um elemento cultural tão forte não se esvai assim facilmente. É possível até que a energia positiva que virá seja canalizada para outras áreas. Espero que para a ciência e para a educação. E também que outros esportes possam produzir novos campeões.
O que nós tivemos a oportunidade de assistir ontem não tem nada a ver com isso. Não houve harmonia. Era feio. Muito estranho para todos nós.
No entanto, eu não subestimaria a capacidade das gerações presentes e futuras de superar e recuperar sua tradição. Um elemento cultural tão forte não se esvai assim facilmente. É possível até que a energia positiva que virá seja canalizada para outras áreas. Espero que para a ciência e para a educação. E também que outros esportes possam produzir novos campeões.
Essa ligação entre o Brasil e o
"nosso futebol" deve ser moderada daqui por diante.
Este é um bom momento para falarmos sobre pluralidade e reinventarmos nosso futebol.
É o fim de um ciclo. O fim da era Pelé. E é bom. Se os clubes realmente quiserem ganhar dinheiro e clientes com seus espetáculos esportivos, então devem melhorar muito a performance geral. Continuaremos a ter o "futebol de raiz", convivendo com o "futebol show business". Saberemos separar as coisas, como já fizemos com o samba e a festa midiática da Sapucaí, feita sobretudo para nossos turistas.
Este é um bom momento para falarmos sobre pluralidade e reinventarmos nosso futebol.
É o fim de um ciclo. O fim da era Pelé. E é bom. Se os clubes realmente quiserem ganhar dinheiro e clientes com seus espetáculos esportivos, então devem melhorar muito a performance geral. Continuaremos a ter o "futebol de raiz", convivendo com o "futebol show business". Saberemos separar as coisas, como já fizemos com o samba e a festa midiática da Sapucaí, feita sobretudo para nossos turistas.
Agora temos de nos concentrar nas eleições presidenciais e parlamentares. É em outubro. Temos muito a fazer pela nossa democracia também. Em certo sentido, há muita semelhança entre a política e o futebol do Brasil na atualidade: o ciclo dos partidos que lutaram contra a ditadura (PMDB, PT, PSDB) também estão se esgotando. Precisamos de algo novo na política. Parece que também na democracia estamos finalizando mais um ciclo.
Saudações a todos aí na França.
Beijos à Jeanne.
Diga a ela que Dora gostaria de vê-la novamente, mas aqui no Brasil.
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Dear Jean,
France, July 2014
Actually, we always learn
with our own mistakes. I think it was very good, for our soccer, to have been a defeat like this,
and for a team
like Germany.
The German team
is formidable. Isn't it a good example to use in order to explain to our children how we ought to act, whether in football or in your life as a whole? if we have to do something, so do it well. That's the pathway to do the "good".
Nevertheless, we have good examples of other World
Cups, as well as from our own social history about what we should and what we should never do or repeat. However,
to be capable of learning with the faults of the past one must be aware
of the reality and must have an appealing reason in order to wish
to be better. But that was not the case. Those soccer players do not recognize themselves as a part of a tradition, a culture. Now we know that.
Those "kids"
of the current brazilian soccer team do not know
anything about this discourse. They have no clear sense of what it means to be a Brazilian soccer player as cultural good. Those "kids" are part of a generation that has no vital connection with soccer anymore. For them, football is a job: pathway for money. But they do not play a professional soccer yet, I mean, they do not no to do their job as a team focused on money. Therefore, they are totally out of the box. No cultural binding, no professionalism. Bad landscape.
I guess, among other things, Brazil has changed. This new approach of our soccer players lets see some important things. The World
Cup is not something very attractive for us Brazilians anymore (the
reactions on the
streets, one year before the beginning of the
world cup, brings about very interesting things). The World
Cup it's a mere sporting event. A global business event.
There is a widespread impression, at least since 1998, that those soccer players, the coaching staff and managers of sporting events, those who dress the yellow Brazilian soccer shirt, are there on the field only for their own interests. Nevertheless, I'm aware that is not a moral fault. Consequently, the responsibility for that historical embarrassment is theirs. It is not a
Brazil's fault. However, it affects us,
every one of us.
Those
Brazilian soccer players who seemed to play a real soccer game with an adult team for the first time in their lives, helped us to reflect, also, on something very particular, that reminds the writer and dramaturgist Nelson Rodrigues, that
described "the inferiority complex" for the country's attitude toward popular first world
countries as a "complex of stray dogs".
I couldn't believe my eyes, but that team played with "the inferiority complex of stray dogs", as the great journalist from the sixties used to describe our soccer players, and Brazilians in general,
before the World Cup in Sweden, in 1958: the intense fear, and
disbelief in themselves facing a great challenge was the typical Nelson Rodrigues's attitude.
My daughter, as many real children (7 years) is upset with
"that Brazil". She should
not, but she'll learn
from this. After all, this is not
a war. There's not an economic collapse. There's no hunger or an epidemic.
It's a punch in our joy. Because Brazilian
soccer is a cultural element,
associated with joy and improvisation of everyday life.
It's the Samba! It is
something like jazz for black people
in the United States. But improvisation and
joy must have harmony,
as it is in Jazz and
Samba. However, they are very remote from harmony, samba and jazz.
I have read a critical review written by a journalist which stated
that "the beautiful game ended.
Remains only soccer-samba". Nothing could be more wrong. Whoever said that remains "only football-samba", knows nothing
of Brazilian culture, And knows nothing of the link between football and Brazilian culture. It may explain only the surface of things. What was missing yesterday was precisely the vital link between sport and life, which always throbbed
with samba and soccer.
What we had the opportunity to watch yesterday had nothing to do with it. There was no harmony.
Therefore, it was ugly. Very strange to
all of us.
However, I would not underestimate the ability of present and future
generations to overcome this. Such a strong cultural element does not fade so easily. It is even possible
that new
positive energy will be driven
to other areas. I hope for science and education. Nonetheless, also that other sports should produce their champions. This connection between Brazil and football must
be tempered. This a best moment to
talk about plurality and reinvent our
football.
This is the end of a
cycle. It is the ending of Pelé's era. Finally: and it is very good. From now on If clubs really want to make money and customers with their sporting events, so should greatly improve the overall performance. We will continue to have the "Football from our roots," living with "football show business". We will know to separate both things, such as we've separated the samba from the mediatic celebration of Sapucahy dedicated, above all, to our tourists.
Now we have to focus on
the presidential election. It's
in October. We have much to do for our democracy as
well!
In certain sense, there are a bunch of similarities between politics and football in Brazil in the present time: the cycle of the parties who fought against
the dictatorship (PMDB, PT, PSDB) are now also running
out. We need something new in politics as well.
Greetings to all of you, in France.
Kisses to Jeanne. Tell her that Dora would like to see her again, but here in Brazil.
Greetings to all of you, in France.
Kisses to Jeanne. Tell her that Dora would like to see her again, but here in Brazil.
Curitiba, July 9th 2014
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