Ferrajoli - Principia Iuris


O jurista italiano Luigi Ferrajoli (Universidade de Roma - La Sapienza) publicou em 2007 a sua obra magna. São 3 imensos volumes. Um dedicado à teoria do Direito, outro à teoria da democracia, outro às formulas lógicas que sustentam as conclusões da teoria do direito.

O autor se tornou célebre no Brasil depois de seu livro sobre a teoria do garantismo penal apresentada, mais organizadamente, no livro Direito e Razão, traduzido pela editora Revista dos Tribunais.

Para quem ainda não teve acesso à nova obra, publicada pela Laterza (Italia), fiz uma tradução seletiva de algumas passagens do prefácio da obra, onde ele expõe, claramente, os objetivos e o método deste seu PRINCIPA IURIS.


Luigi Ferrajoli. Principia Iuris. Teoria del diritto e della democrazia. Editori Laterza, 2007


Este livro contém uma teoria do direito construída com o método axiomático. Ele se compõe, além de uma introdução metateórica, de quatro partes: a primeira é dedicada à deôntica, ou seja, às relações que ocorrem no interior de qualquer sistema normativo, entre ações, qualificações deônticas, sujeitos e regras; a segunda parte é dedicada ao direito positivo, isto é, às mesmas relações que ocorrem, mais especificamente, entre atos jurídicos, situações jurídicas, pessoas e normas jurídicas; a terceira parte trata do estado de direito, ou seja, dos sistemas de direito positivo caracterizados pela sujeição ao direito de toda produção jurídica; a quarta trata daquele específico modelo de estado de direito que é a democracia constitucional e às suas diversas dimensões e níveis, os quais resultam em diferentes classes de direitos fundamentais que serão aqui abordados. (Ferrajoli: Principia Iuris, III)

QUAL É O OBJETO DA TEORIA?

O objeto da teoria é a análise das formas do direito positivo dos ordenamentos modernos, a partir de um modelo integrado de ciência jurídica que seja capaz de dar conta das divergências que sempre ocorrem, em alguma medida, entre princípios e práxis e, por consequência, das características da inefetividade dos princípios e da ilegitimidade da praxis. O objetivo desta teoria é a redefinição do paradigma teórico e normativo das atuais democracias constitucionais, hoje em crise, e identificar os diversos tipos de garantias idôneas para assegurar o máximo grau de efetividade, contra os diversos tipos de poderes, à tutela dos diversos tipos de direitos. O método adotado é o axiomático, o qual comporta a reelaboração de toda a linguagem jurídica teórica, por meio da definição, implícita ou explícita, de todos os seus termos, e a fundação, por via de presunções ou demonstrações, de todas as suas assertivas. (Ferrajoli: Principia Iuris, III)
(...)

POR QUE APLICAR UM MÉTODO AXIOMÁTICO?

O aspecto mais evidente e insólito desta teoria é, sem dúvidas, o emprego do método axiomático, com o seu conjunto de fórmulas em linguagem simbólica para atender às exigências de formalização e de cálculo. De acordo com este método, nenhum conceito pode ser admitido se não for definido mediante outros termos teóricos a partir de regras de formação previamente estabelecidas, e nenhuma tese pode ser admitida se não for demonstrada a partir de outras teses da teoria fundada em regras de transformação também previamente estabelecidas. Naturalmente, para evitar um regresso ao infinito, alguns conceitos, em forma de conceitos primitivos, são aceitos como indefinidos e algumas teses, em forma de postulados ou definições, são aceitas como indemonstráveis. A reconstrução de toda a linguagem teórica da ciência jurídica torna-se possível porque – à diferença da linguagem das disciplinas jurídicas particulares, que chamarei de dogmática porque está dogmaticamente vinculada, como será visto, ao léxico da linguagem legal – é uma linguagem “artificial” ou “convencional”, elaborada pelo teórico e, por isso, formalizável a partir de regras por ele mesmo estipuladas. (Ferrajoli: Principia Iuris, VI)

O MÉTODO AXIOMÁTICO REPRESENTA UM PODEROSO INSTRUMENTO DE CLARIFICAÇÃO CONCEITUAL, DE ELABORAÇÃO SISTEMÁTICA E RACIONAL E DE ANÁLISE CRÍTICA

As razões que justificam o emprego deste método são, obviamente, de caráter, sobretudo, teórico: a simplificação da linguagem teórica, a clareza e a univocidade dos conceitos e das teses escolhidas; a exposição sujeita a um controle lógico de todas as deduções e à avaliação e à crítica extra-lógica de todas as premissas; a coerência interna e a sistematicidade do conjunto; a superação, por fim, das ambigüidades e das muitas aporias e paralogismos que são inevitáveis em qualquer discurso formulado a partir da linguagem comum. Todavia, o rigor imposto à axiomatização também tem uma função prática. O método axiomático representa, na realidade, a meu ver, um poderoso instrumento de clarificação conceitual, de elaboração sistemática e racional, de análise crítica e de invenção teórica, e é, então, particularmente eficaz para os fins de explicação da crescente complexidade e inefetividade dos ordenamentos modernos e, ainda, para a projeção de seus modelos normativos e de suas técnicas de garantia. Além disso, como será visto, tal método permite desenvolver um aparente paradoxo: uma formalização rigorosa da dimensão substancial e axiológica imposta ao direito positivo pelo paradigma atual do constitucionalismo democrático. Em princípio, ainda que possa parecer um tanto paradoxal, a tabula rasa do discurso operada pela sua axiomatização por meio da reconstrução de toda a linguagem teórica deveria tornar acessível a teoria, inclusive, a leitores não especialistas em direito. (Ferrajoli: Principia Iuris, VI-VII).
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A TEORIA NORMATIVA DA DEMOCRACIA É O BANCO DE PROVA DA TEORIA FORMAL

Quero registrar, por fim, que a quarta parte, dedicada à democracia, não contém nenhuma fórmula. Ela não é, de fato, um desenvolvimento da teoria axiomatizada do direito; é, ao invés, uma interpretação explicativa que projeta o paradigma constitucional elaborado por ela a partir da estrutura das democracias constitucionais atuais. Puxam-se os fios e se extraem consequências com o fim de elaborar um modelo normativo de democracia a partir da rede complexa das teses admitidas ou demonstradas nas três partes precedentes, dedicadas à teoria do direito: em particular, sobre as relações entre direito e garantias, sobre a hierarquia das fontes e dos poderes, sobre a validade dos atos preceptivos, sobre a legitimidade das normas, sobre suas condições de efetividade, sobre a distribuição de competências e as instituições de garantia exigidas por elas e sobre a potencialidade expansiva do paradigma constitucional para o direito supra e inter-nacional. Pode-se dizer até, inversamente, que a teoria (normativa) da democracia é o banco de prova da teoria (formal) do direito dos ordenamentos constitucionais atuais, e que esta última foi elaborada tendo em vista a teoria normativa da democracia; tanto é assim que esta pode ser lida separadamente por quem se interessar mais diretamente por ela; depois, podem se encaminhar às teses sobre a teoria do direito que lhe dão respaldo e que fornecem os termos, a sintaxe, os pressupostos e os fundamentos. (Ferrajoli: Principia Iuris, VIII).

ESTA TEORIA PARECE DESATUALIZADA, MAS À CRISE DA RAZÃO JURÍDICA E POLÍTICA NÃO EXISTE ALTERNATIVA QUE NÃO SEJA A PRÓPRIA RAZÃO

Tenho consciência de que toda a teoria aqui apresentada pode parecer, hoje, sob muitos aspectos, desatualizada. (...)(Ferrajoli: Principia Iuris, IX).
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Mas até mesmo essa desatualização foi uma das razões que mais influenciaram este trabalho. A teoria do direito, como sustentarei nas páginas seguintes da Introdução, tem a tarefa de elaborar, analisar e explicitar a rede de relações lógicas entre conceitos e assertivas que compõem o modelo, não só explicativo mas também normativo, daquele complexo artifício que é o atual paradigma da democracia constitucional, caracterizado – em seus diversos níveis, estatais e supraestatais – pela normatividade do direito em confronto com si mesmo. Parece-me ser suficientemente claro, então, que uma teoria do direito é tanto mais idônea para tematizar os problemas, nominar e esclarecer os termos e, sobretudo, fundar a análise, a crítica e as técnicas de redução das inevitáveis divergências existentes entre dever ser constitucional e o ser efetivo do direito vigente, quanto maior for o rigor lógico de sua linguagem e das relações que formular. Já que a lógica é do discurso teórico sobre o direito, tanto mais se axiomatizado, e não, ainda que deveria, ser do discurso do direito positivo; e quanto menos o for – quanto mais irracional e ilegal forem a pratica jurídica e política, quanto mais inefetivos são os seus modelos normativos, quanto mais distantes dos princípios do direito for a realidade das relações sociais – tanto mais necessária se torna a função pragmática da teoria enquanto instrumento racional de analise crítica, de projeção jurídica e de refundação do senso comum em torno do direito e da política. À crise da razão jurídica e política, de fato, não existe alternativa que não seja a própria razão. (Ferrajoli: Principia Iuris, IX-X).

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