AJUSTE FISCAL E A POSIÇÃO DOS TRIBUNAIS CONSTITUCIONAIS


A MODULAÇÃO DE EFEITOS E PONDERAÇÃO DE BENS QUE VEM DA ITALIA 


Depois de ler o artigo "An Evolution in “Italian Style”: The Constitutional Court says it will Govern the Effects of its Judgments (and Will Use the Proportionality Test to Do It)", de Erik Longo (Universidade de Macerata) e Andrea Pin (Universidade de Pádua), decidi analisar a decisão para compreender os motivos que levaram a Corte Italiana a mudar seu posicionamento em relação à ponderação e balanceamento dos efeitos de suas decisões. 

A meu ver, o caso é muito importante para futuras decisões no Brasil. Trata-se de um caso que envolve iniciativas legislativas para aumentar receita tributária em um contexto de crise. Muito útil é o desfecho e, em especial, as razões constitucionais que fundamentam a decisão.

A Sentença n. 10, 09.02.2015 é, por certo, uma das mais importantes decisões constitucionais da Itália, e foi proferida no inicio do mês de fevereiro de 2015.  E a importância especial dessa decisão se deve ao fato, por um lado, de ter que ver com temas de ajuste fiscal, tributação adicional e seus impactos em contexto de crise e, por outro, de que a Corte Constitucional italiana assumiu, expressamente, seu dever jurisdicional de modular os efeitos de suas decisões e, assim, afirmar, solenemente, que na interpretação constitucional, mesmo em contexto de crise, os seguintes postulados interpretativos devem ser observados:  


a) a Constituição deve ser garantida como um todo unitário, e sua interpretação deve assegurar uma tutela sistêmica e não fracionada do texto; 


b) a Constituição italiana, como outras Constituições democráticas e pluralistas contemporâneas, reclama um contínuo e equilibrado balanceamento entre princípios e direitos fundamentais, sem pretensão de posição absoluta para nenhum deles;


c) a prática das Cortes Constitucionais européias revela que o dever jurisdicional de modular efeitos e de ponderar direitos e princípios independe do fato de a Constituição, ou o legislador, terem explicitamente conferido tais poderes ao Poder Judiciário;


d) que em períodos de persistente crise econômica é legítimo que a Corte Constitucional considere os efeitos de suas decisões em relação aos setores mais vulneráveis da sociedade e, com base no princípio da solidariedade social, distribua de forma equitativa os efeitos econômicos de suas decisões; 


e) que no exercício da interpretação ponderada da Constituição da Itália se deve ter em conta que há dois princípios que têm precedência sobre os demais, e que, assim, orientam os resultados da decisão justa: em primeiro lugar o princípio da igualdade; em segundo lugar, o princípio da solidariedade.


Síntese dos fatos discutidos no caso:


O caso diz respeito com o aumento de um tributo, por decreto-lei, na forma de um “adicional” de 5,5%, incidente sobre a renda de empresas do setor petrolífero que obtiveram lucros superiores a 25 milhões de euros durante o ano-base anterior do tributo, proibindo (Art. 81,18 DL 112/2008) os sujeitos passivos de repassar esse adicional aos preços dos consumidores e confiando à autoridade de energia elétrica e de gás a competência de supervisionar, e de apresentar ao Parlamento, até o dia 31.12 de cada ano, uma avaliação sobre os efeitos sociais do “adicional”. 

Uma discussão anterior, do ano de 2010, abordava o fato de que esses recursos deveriam compor, junto com outras fontes, um Fundo Especial para atender necessidades de pessoas da faixa de renda mais baixa, e em situação de especial necessidade, com a compra de alimentos e de energia (Art. 81, 29 DL 112/2008). 

O problema, naquele ano, residia num conflito de competências entre o governo central e os governos regionais, uma vez que o Decreto Presidencial, depois de acerto interministerial, estabeleceu, não apenas os critérios gerais de prestação social, mas também os detalhes da gestão e da individuação dos beneficiários da "Carta de Compras" a ser distribuída, fixando até os critérios de quem deveria ser considerado como inapto, ou seja, quem deveria ficar de fora da situação de necessidade. Segundo as regiões autônomas da Italia, o referido DL criou um sistema vinculado de transferência de renda para fins de proteção social fora do esquema constitucional dos direitos previdenciários, de saúde e de assistência social, e sem envolver a competência legislativa residual das regiões. Segundo estas, esse modelo regulatório violaria a competência residual das regiões, impedindo-as de realizar essa política social individuada, não caracterizável como benefício previdenciário, serviço de saúde ou de assistência social. 

Para a Corte Constitucional, no entanto, (vide Sentenza n. 10, 2010) esse argumento formal, e de natureza constitucional, relativo à quebra do sistema de distribuição de competências, deveria ser relativizado em face da situação de extremada necessidade e, também, pela necessidade de ser estabelecido um critério único de proteção do "núcleo irrenunciável da dignidade da pessoa humana" (Sentenza n. 10/2010, itens 6.3, 6.4). 

O novo pedido de inconstitucionalidade (2011), em face do mesmo DL 112/2008, agora por iniciativa das empresas definidas como sujeitos passivos da obrigação de pagar o adicional de 5,5%, teve como fundamento: 1) a impossibilidade jurídica de tal exigência, uma vez que um adicional de tributo instituído por tempo indeterminado corresponderia, por via oblíqua, à criação de um tributo autônomo e ordinário, deixando de ser uma medida extraordinária e temporária adotada em resposta a uma situação emergencial. 2) Só isso já seria o suficiente para retirar a legitimidade de sua instituição por Decreto-Lei, que só pode ser expedido em caso de necessidade e urgência (Art. 77 da Const. da Itália). 3) Além do mais, fazer incidir um adicional apenas sobre um setor da economia, o de comércio de hidrocarburetos (setor distribuidor), seria uma medida legislativa discriminatória em 2 sentidos: primeiro por que o tributo não incidiu igualmente para todos os setores da economia do petróleio (não se aplicou aos produtores), segundo, por que só atingiu as empresas que obtiveram lucros superiores a 25 milhões de euros no ano anterior. 4) Por fim, a proibição de transferência para os preços, desse encargo adicional, seria uma medida inconstitucional de intervenção no sistema de economia de mercado.

Quanto ao fundamento de falta de requisito de necessidade e urgência, a Corte não o reconheceu. A seu ver era notória a situação emergencial, de crise, surgida no contexto do ano de 2008. Quanto ao aspecto formal de o adicional ter sido instituído por Decreto-Lei, a Corte se pronunciou dizendo não haver inconstitucionalidade, uma vez que os DL também são fonte de direito e que não são atos unilaterais de um Poder, mas que o Legislativo participou de sua deliberação.

Já em relação ao reclame de tratamento discriminatório às empresas do setor de distribuição de hidrocarburetos, a Corte se pronunciou dizendo que o critério constitucional para estabelecer tributos ou sua elevação, é o da capacidade contributiva. O que implica dizer que, à primeira vista, não poderia haver eleição setorizada de sujeitos passivos. Contudo, isso só à primeira vista, uma vez que "nem toda modulação do sistema de impostos por setores produtivos constitui uma violação ao princípio da capacidade contributiva e do princípio da igualdade" (Sentenza 10/2015, item 6.2). Todavia, qualquer diferenciação deve ser baseada em uma adequada justificação objetiva. 

Contudo, e a despeito de reconhecer a legitimidade dos fins perseguidos pelo governo, a Corte entendeu que os meios adotados  para fazer face à situação de crise não passam pelo teste da razoabilidade (adequação de meios). E não por causa da regulação do tema por um DL (correspondente, no Brasil, à Medida Provisória), mas porque o DL não apresenta uma delimitação temporal de seu âmbito de aplicação, ou de mecanismos aptos a verificar o transcurso da situação de crise e o agravamento (ou abrandamento) de suas necessidades, nem, tampouco, sugere como seria possível supervisionar se o setor tributado está, ou não, repassando esse adicional aos produtos que vende ao consumidor. (Ver item 6.5.4)

Assim, a Corte declarou a inconstitucionalidade do referido DL, por inadequação de meios. Mas fixou, pela primeira vez, a modulação dos efeitos da decisão, de modo a garantir que a inconstitucionalidade seja reconhecida ex nunc, ou seja, apenas a partir da data da decisão, e não da data em que o DL entrou em vigor.  

  As principais passagens da fundamentação da decisão, com minha tradução livre:

7. - Ao pronunciar a inconstitucionalidade das disposições impugnadas, esta Corte não pode deixar de levar na devida consideração o impacto de uma tal pronúncia  sobre os demais princípios constitucionais, a fim de avaliar a eventual necessidade de uma graduação dos efeitos temporais da própria decisão sobre as relações jurídicas pendentes.
O papel confiado a esta Corte como guardiã da Constituição na sua integralidade impõe que se evite que a declaração de inconstitucionalidade de uma disposição legal determine, paradoxalmente, "efeitos ainda mais incompatíveis com a Constituição (sentença n. 13, 2004) do que aqueles que a induziram a censurar uma certa disciplina legislativa. Para evitar que isso ocorra, é competência desta Corte modular as próprias decisões, inclusive em seus aspectos temporais, de modo a impedir que a afirmação de um princípio constitucional determine o sacrifício de um outro.

7.– Nel pronunciare l’illegittimità costituzionale delle disposizioni impugnate, questa Corte non può non tenere in debita considerazione l’impatto che una tale pronuncia determina su altri principi costituzionali, al fine di valutare l’eventuale necessità di una graduazione degli effetti temporali della propria decisione sui rapporti pendenti.

Il ruolo affidato a questa Corte come custode della Costituzione nella sua integralità impone di evitare che la dichiarazione di illegittimità costituzionale di una disposizione di legge determini, paradossalmente, «effetti ancor più incompatibili con la Costituzione» (sentenza n. 13 del 2004) di quelli che hanno indotto a censurare la disciplina legislativa. Per evitare che ciò accada, è compito della Corte modulare le proprie decisioni, anche sotto il profilo temporale, in modo da scongiurare che l’affermazione di un principio costituzionale determini il sacrificio di un altro.


Una simile graduazione degli effetti temporali delle dichiarazioni di illegittimità costituzionale deve ritenersi coerente con i principi della Carta costituzionale: in tal senso questa Corte ha operato anche in passato, in alcune circostanze sia pure non del tutto sovrapponibili a quella in esame (sentenze n. 423 e n. 13 del 2004, n. 370 del 2003, n. 416 del 1992, n. 124 del 1991, n. 50 del 1989, n. 501 e n. 266 del 1988).

Uma semelhante graduação dos efeitos temporais das declarações de inconstitucionalidade deve ser coerente com os princípios da Carta Constitucional: nesse sentido esta Corte já operou também no passado, em algumas circunstâncias embora não completamente sobrepostas à esta em exame (sentenze n. 423 e n. 13 del 2004, n. 370 del 2003, n. 416 del 1992, n. 124 del 1991, n. 50 del 1989, n. 501 e n. 266 del 1988).


Il compito istituzionale affidato a questa Corte richiede che la Costituzione sia garantita come un tutto unitario, in modo da assicurare «una tutela sistemica e non frazionata» (sentenza n. 264 del 2012) di tutti i diritti e i principi coinvolti nella decisione. «Se così non fosse, si verificherebbe l’illimitata espansione di uno dei diritti, che diverrebbe “tiranno” nei confronti delle altre situazioni giuridiche costituzionalmente riconosciute e protette»: per questo la Corte opera normalmente un ragionevole bilanciamento dei valori coinvolti nella normativa sottoposta al suo esame, dal momento che «[l]a Costituzione italiana, come le altre Costituzioni democratiche e pluraliste contemporanee, richiede un continuo e vicendevole bilanciamento tra princìpi e diritti fondamentali, senza pretese di assolutezza per nessuno di essi» (sentenza n. 85 del 2013).

A competência institucional confiada a esta Corte exige que a Constituição seja garantida como um todo unitário, de modo a assegurar “uma tutela sistêmica e não fracionada” (sentenza n. 264 del 2012) de todos os direitos e princípios implicados na decisão. “Se assim não fosse, verificar-se-ia uma ilimitada expansão de um dos direitos, que seria “tirano” nos confrontos emergentes em outras situações jurídicas constitucionalmente reconhecidas e protegidas”: por isso a Corte opera normalmente um razoável balanceamento de valores implicados na normativa submetida ao seu exame, uma vez que “a Constituição italiana, como outras Constituições democráticas e pluralistas contemporâneas, reclama um contínuo e equilibrado balanceamento entre princípios e direitos fundamentais, sem pretensão de posição absoluta para nenhum deles (sentenza n. 85 del 2013).

Sono proprio le esigenze dettate dal ragionevole bilanciamento tra i diritti e i principi coinvolti a determinare la scelta della tecnica decisoria usata dalla Corte: così come la decisione di illegittimità costituzionale può essere circoscritta solo ad alcuni aspetti della disposizione sottoposta a giudizio – come avviene ad esempio nelle pronunce manipolative – similmente la modulazione dell’intervento della Corte può riguardare la dimensione temporale della normativa impugnata, limitando gli effetti della declaratoria di illegittimità costituzionale sul piano del tempo.

São as próprias exigências ditadas pelo razoável balanceamento entre direitos e princípios implicados que determinam a escolha da técnica decisória a ser usada pela Corte: assim como a decisão de inconstitucionalidade pode se circunscrever apenas em alguns aspectos do dispositivo sub judice – como ocorre, por exemplo, com as pronúncias manipulativas – igualmente a modulação da intervenção da Corte pode pode referir-se à dimensão temporal da normativa impugnada e limitar, assim, os efeitos da declaração de inconstitucionalidade no plano temporal.


Del resto, la comparazione con altre Corti costituzionali europee – quali ad esempio quelle austriaca, tedesca, spagnola e portoghese – mostra che il contenimento degli effetti retroattivi delle decisioni di illegittimità costituzionale rappresenta una prassi diffusa, anche nei giudizi in via incidentale, indipendentemente dal fatto che la Costituzione o il legislatore abbiano esplicitamente conferito tali poteri al giudice delle leggi.

De resto, a comparação com outras Cortes constitucionais européias – tais como, por exemplo, a austríaca, germânica, espanhola e portuguesa – mostra que a contenção dos efeitos retroativos das decisões de inconstitucionalidade representa uma prática difusa, até mesmo nos juízos incidentais, independentemente do fato de que a Constituição ou o legislador tenham explicitamente conferido tais poderes ao juiz de direito. 


Una simile regolazione degli effetti temporali deve ritenersi consentita anche nel sistema italiano di giustizia costituzionale.
(…)

Uma regulação semelhante dos efeitos temporais deve ser admitida também no sistema italiano de justiça constitucional.


Pertanto, le conseguenze complessive della rimozione con effetto retroattivo della normativa impugnata finirebbero per richiedere, in un periodo di perdurante crisi economica e finanziaria che pesa sulle fasce più deboli, una irragionevole redistribuzione della ricchezza a vantaggio di quegli operatori economici che possono avere invece beneficiato di una congiuntura favorevole. Si determinerebbe così un irrimediabile pregiudizio delle esigenze di solidarietà sociale con grave violazione degli artt. 2 e 3 Cost.

Portanto, as consequências amplas da remoção, com efeito retroativo, da normativa impugnata acabaria por gerar, em um período de persistente crise econômica e financeira que pesa mais sobre os mais vulneráveis, uma desarrazoada redistribuição da riqueza em vantagem daqueles operadores econômicos que podem ter se beneficiado numa conjuntura favorável. Determinar-se-ia, assim, um irremediável prejuízo às exigências de solidariedade social com grave violação dos Arts. 2o e 3o da Constituição. 

Inoltre, l’indebito vantaggio che alcuni operatori economici del settore potrebbero conseguire – in ragione dell’applicazione retroattiva della decisione della Corte in una situazione caratterizzata dalla impossibilità di distinguere ed esonerare dalla restituzione coloro che hanno traslato gli oneri – determinerebbe una ulteriore irragionevole disparità di trattamento, questa volta tra i diversi soggetti che operano nell’ambito dello stesso settore petrolifero, con conseguente pregiudizio anche degli artt. 3 e 53 Cost.

Além disso, a vantagem indevida que alguns operadores econômicos do setor poderiam conseguir – em razão da aplicação retroativa da decisão da Corte em uma situação caracterizada pela impossibilidade de distinguir e isentar da obrigação de restituir aqueles que foram onerados – determinaria uma desarrazoada disparidade de tratamento, desta vez entre os diversos sujeitos que operam no âmbito do mesmo setor petrolífero, com consequente prejuízo dos artigos 3 e 53 da Constituição.  


La cessazione degli effetti delle norme dichiarate illegittime dal solo giorno della pubblicazione della presente decisione nella Gazzetta Ufficiale della Repubblica risulta, quindi, costituzionalmente necessaria allo scopo di contemperare tutti i principi e i diritti in gioco, in modo da impedire «alterazioni della disponibilità economica a svantaggio di alcuni contribuenti ed a vantaggio di altri […] garantendo il rispetto dei principi di uguaglianza e di solidarietà, che, per il loro carattere fondante, occupano una posizione privilegiata nel bilanciamento con gli altri valori costituzionali» (sentenza n. 264 del 2012).
A cessação dos efeitos das normas declaradas inconstitucionais a partir do dia da publicação desta presente decisão no Diário Oficial da República resulta, então, constitucionalmente necessária a fim de ponderar todos os princípios e o direito em jogo, de modo a impedir “alterações de disponibilidade econômica em desvantagem de alguns contribuintes e em vantagem de outros [...] garantindo o respeito aos princípios da igualdade e de solidariedade, que, por sua natureza fundamente, ocupam uma posição privilegiada no balanceamento com os demais valores constitucionais (sentenza n. 264 del 2012) 
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