TEMPOS DE DEVASSA
Em tempos de
Operação Lava Jato, compartilho minha leitura dos AUTOS DA DEVASSA DA
INCONFIDÊNCIA MINEIRA, de 29.01.1790. É bem instrutivo.
Pintura:
TIRADENTES, de Candido Portinari.1948
Chama a atenção,
especialmente, o tom republicano do levante. As citações que
separei parecem ser úteis para estimular a consulta ao documento original,
aprofundar o entendimento sobre o Brasil e, quem sabe, ajudar a ver melhor o
contexto político amplo do quase-levante contra a Monarquia portuguesa.
Há aí alguma
coincidência com a operação Lava-Jato. Nos dois casos há o sintoma do
esgotamento de um ciclo político. E nos dois casos há a escandalosa sensação de
roubo e abuso do poder e de traição. Lá cortaram a cabeça de Tiradentes. Aqui,
sobe ao poder o PMDB, multifacetado.
A operação Lava
Jato, ao que se pode notar pela imprensa, blogs, comentaristas e sondagens,
visa, diretamente, proteger a res publica, o patrimônio
público. É uma defesa do Estado.
Pelo visto vamos
recuperar muito do que foi roubado. O Estado e a Petrobrás, como entes físicos,
sobreviverão. Haverá também muitos condenados e execrações, pois nossa cultura
judaico-cristã reclama rituais de expiação. E eles virão.
Menos claro, a
esta altura, é o que vai restar da República como símbolo político de nossa
unidade, de compromisso comum de classes, de autoridades e povo (auctoritas et
populus). Não é a corrupção em termos de agressão aos bens patrimoniais do
Estado que mais preocupa. Mas a República como um símbolo de comunitas, como
unidade política do Brasil.
Que aprendizado
político sai desse episódio? É de se perguntar.
Do episódio de
Tiradentes saiu muito pouco de inspiração republicana. Afinal, ainda o
associamos a um feriado. E se vamos mais longe, esse símbolo
que povoa nossas praças e ruas, nós o vemos como “aquele que morreu por nós”,
numa sorte de associação com a paixão de Cristo, com direito à
traição de seu Judas (o Joaquim Silvério dos Reis) e de vê-lo compor um grupo
de 12 confederados...
E da operação
Lava Jato, aqui e agora, que aprendizado vem daí para compormos o novo cenário
político do próximo ciclo de 25 anos? E que lideranças o farão, com que
ideais? E desses líderes que estão emergindo aí, quais estão interessados numa
nova coalizão horizontal de classes?
E quanto ao populus?
Se olharmos para os eleitores, em especial para os setores mais ativistas do
momento, tomemos os 110 mil que foram à avenida paulista no último dia 12.04, e
também os que que tem ido às manifestações de repúdio. O quadro não é muito
animador. Veja a pesquisa completa no site do DataFolha.
Dos
manifestantes, 78% tinha ensino superior (no Brasil, em geral, são 16%).
Logo, é uma parcela muito educada. E 41% tinha renda superior a 10 salários
mínimos (no Brasil a renda média é de R$1.950,00). Logo, a classe média-alta
estava bastante representada.
Além disso, 73%
se declarou ter cor branca (na capital de SP 60,5% se declara branco, e no
Brasil, 46%). Dentre os manifestantes, 96% reprova o governo Dilma (contra 60%
dos brasileiros em geral), e 77% reprova o Congresso Nacional (contra 44% dos
brasileiros em geral). Destes, 86% apoia a democracia, mas 9% quer ditadura.
Ainda, 95% não tinha filiação partidária, e 93% não estava ligado a nenhum
movimento pró-impeachment.
Afinal, que
perfil político de cidadão é esse? Que visão de sociedade brasileira e de governo há aí?
O único consenso
firme que temos em todo o país, por hora, é que a democracia é o melhor regime
político. A democracia vai resistindo muito bem. A separação de Poderes também.
Mas nossa relação com representantes vai mal! Então que condições de repactuação
política vertical, quer dizer, entre representantes e representados, são essas
para iniciarmos um novo ciclo político?
As coisas não
ficam mais animadoras se considerarmos nossa visão de prioridades a partir dos
temas-chave do desenvolvimento, tal como estão colocados na agenda das Nações
Unidas: nossa paciência com a desigualdade de gênero e de renda é doentia.
Nossa relação impiedosa com os recursos naturais não renováveis é autofágica.
Nossa irresponsável gestão das cidades, do lixo, dos esgotos...o que dizer?
Isso é prenúncio de tragédia. Não vai nada bem a nossa cegueira.
Esse olhar quer sugerir que nossas certezas para o modelo de desenvolvimento dos
próximos 25 anos estão estão distantes. Se vamos às ruas é por que ainda queremos as prioridades dos anos 90: democracia, acabar com corrupção, ajuste fiscal e baixar inflação, investir em infraestrutura e, assim, aumentar o PIB. É muito pouco. Ficamos iguais à China e à Russia. Deveríamos aprender um pouco mais com os MINT, Mexico, Indonesia, Nigeria e Turquia.
Por outro lado,
tanto as elites do PSDB quanto as do PT, além de outros emergentes, estamos
todos nas mãos do PMDB, que mais lembra uma Hydra de Lerna, do que uma organização
política capaz de conduzir-nos a uma coalizão de classes.
Já está bem. É preciso
respirar um pouco.
À parte as
atualidades, nos autos da Devassa mineira de 1790, consta que os 12 confederados
rebeldes estavam muito influenciados pela independência dos Estados Unidos. Há
indícios de que estudavam até mesmo a estratégia confederada elaborada pelos
Estados Unidos com vistas a repetir, aqui, o modelo de lá.
Thomas Jefferson
foi procurado, consultado, e demonstrou apoio aos brasileiros rebeldes. Os contatos como relatados nos
autos, aliás, coincidem com as Cartas de Jefferson a John Jay e ao
Presidente George Washington. Nelas Jefferson afirmava que tinha interesse em “não mais ver
imperadores ou reis nesse nosso hemisfério e que o Brasil e o México apoiariam”
(Jefferson's Letters on Brazilian Independence)
Para decidir sobre os próximos 25 anos nós deveríamos olhar
de novo para o exterior. E ver com mais calma quais são os países que melhor
resistiram às crises econômicas dos últimos 50 anos. Ver como atuam quanto investem em estrutura de proteção coletiva. Logo notaremos que dois
valores são predominantes: liberdades e igualdade. E os exemplos vêm da Europa
do Norte e dos Estados Unidos. Mas também da Espanha, do México, da Turquia, da Indonésia, da Nigeria e até da
Argentina. Não vêm da China, nem da Russia. Estes últimos andam muito
concentrados em crescimento do PIB. Os outros, mais em formas de articular a proteção coletiva com desenvolvimento sustentável.
Os melhores
resultados, em termos de qualidade de vida (mesmo em ambiente de grave crise)
foram colhidos por nações que souberam fazer política e
edificar um forte senso de communitas e de res publicae, a
despeito dos dissensos, dos específicos interesses de classe, e a despeito das
dificuldades.
Souberam identificar valores comuns, protegê-los juridicamente e que se dispuseram a pensar o
desenvolvimento humano, pela proteção contra a fome, contra a ignorância,
contra doenças, contra a perda de renda por arbitrariedades do mercado. Basta
ver os números do desenvolvimento humano (IDH) desses países, a satisfação com a vida e longevidade.
OS AUTOS DA DEVASSA
Veja o texto completo dos AUTOS lá na
página do Portal da Inconfidência
O SUPOSTO APOIO
DE THOMAS JEFFERSON...mas em troca de bacalhau e trigo...
"que andando nos estudos em Montpellier, conhecera dois sujeitos que se diziam enviados. Um deles, filho do
Rio de Janeiro ao pé da Lapa. E que estes foram
mandados por certos comissários daquela cidade a
tratar com o embaixador da América Inglesa um
levante na dita cidade do Rio. E que, falando com
o referido embaixador, este lhe respondera que
ele escrevia à sua nação a este respeito. E, com
efeito, tornando os ditos enviados, lhes respondera aquele ministro
(Tomás Jefferson) que a sua
nação estava pronta a provê-los de naus e gente,
contanto que se lhes pagassem os soldados
e recebessem o seu bacalhau e trigo.
(...) A cuja proposta respondeu um dos ditos enviados: —
"que tinham cá uma terra que dava muito trigo". E o ministro lhe tornou:
— "que devia ser só aquelas condições".
E dizendo-lhe os ditos que esperariam
a conjuntura de algum tributo para então
levantarem, lhes replicou o embaixador:
— "se não iam cá dinheiros de umas terras
para outras, como os quintos. E dizendo-lhes os enviados que sim,
continuou o ministro: —
"pois é tomar-lhos e eis
feito o levante; e que logo que isso se fizesse, lhe
mandassem aviso, que se poria tudo pronto como
estava justo; e, se necessário fosse, ele embaixador falaria ao Rei da França para ajudar;
e que não temessem a lei do Papa, porque havendo cem
balas ardentes, nada entrava no Rio
de Janeiro". E acrescentando aqueles enviados:
—"que a nação que temiam
mais era a espanhola", lhes respondeu o
ministro: - "que essa nação era lurda e que non temer", insinuando-lhes
ao mesmo tempo a
forma porque se devia fazer o levante.
E que se havia de matar o Vice-Rei
e todos os coronéis que não seguissem o
partido, fazendo-se então um
patíbulo bem alto, onde subiria um homem
desembaraçado e de respeito que fizesse uma eloqüente (Autos da Devassa, 1790,
p. 90)
(...)
LIBERTAS QUAE
SERA TAMEN: TIRADENTES FOMENTA O LEVANTE REPUBLICANO (I)
...dissera que o Ten.
Cel. Francisco de Paula se dispunha a fazer à tropa uma
fala de missionário, mas que Tiradentes
dizia que não devia ser assim. E acrescentara
estas palavras: —"Meus amigos, ou seguir-me, ou morrer. E ele, já pronto a cortar cabeças..." Ao que se
riu o Respondente, dizendo-lhe: —
"Tudo isto mostra que Vs. são uns loucos." E neste conceito
viveu sempre ele, Respondente, parecendo-lhe tudo aquilo uma comédia. IV.1.12.
Foi mais perguntado se os Confederados tinham já tratado
de levantar armas ou bandeira. Respondeu que: não havia dúvida dizer o Cel. Alvarenga, em certa ocasião, que se
poria uma letra que dissesse: Libertas Quae Sera Tamen (Autos
da Devassa, 1790, p. 133)
(...)
O TEMOR É DE UM
LEVANTE REPUBLICANO
XII.1.5 — Foi
mais perguntado ele, Respondente, se alguma vez nesta Capitania — e
positivamente nesta Vila Rica—conversou com alguma pessoa fazendo paralelo da
América Inglesa com esta Portuguesa; e que, se ela seguisse o mesmo sistema,
viria a ser uma república florente. Respondeu que: não se lembrava de ter tido
com pessoa algum nesta Capitania, nem menos nesta mesma vila, semelhante
conversação. (Autos da Devassa, 1790, p. 244)
(...)
TIRADENTES
FOMENTA O LEVANTE REPUBLICANO (II)
...pousando na Estalagem
de João da Costa Rodrigues, se achava também nela um
alferes do Regimento Pago (RCR) desta Capitania, cujo nome ignora e só sabe que
tem por alcunha Tiradentes, o qual conversando com o dito estalajadeiro —
entrou a dizer que esta terra podia ser uma república, porque tinha em si
muitos gêneros para a sua subsistência, como
eram os algodões, muito ferro, ouro e diamantes (Autos da Devassa, p. 262).
(...)
NOVAS LEIS
ESTAVAM SENDO ESCRITAS, HAVIA PLANOS ECONÔMICOS ELABORADOS
...ele mesmo e o Alf. Tiradentes foram os
que contaram a Domingos de Abreu que se levantava casa da
moeda, que se punha o ouro a mil e quinhentos réis, e que
se deviam apreender os cofres reais; no que tinham assentado tanto o Vigário de São José, Carlos Correia
(de Toledo), como o Cel. Alvarenga
— com cuja assistência o Des. Gonzaga
tratava as leis para o regimento da nova república. (Autos da Devassa, 1790, p.
334).
(...)
A REPÚBLICA ERA
IMINENTE
...E quase
chegando àquele arraial dos Prados, me disse que
talvez já não fosse a Coimbra, por certa circunstância. E
perguntando-lhe eu, me disse que era porque o Brasil se
fazia em breve uma república (Autos
da Devassa, 1790, p. 466).
(...)
MUITOS PLANOS,
POUCA AÇÃO.
RIO DE JANEIRO —
Denunciado por Joaquim Silvério, o Pe. Inácio Nogueira de Lima acabou
confessando o esconderijo de Tiradentes, já noite. A casa de Domingos Fernandes
da Cruz foi cercada e Tiradentes preso. (Autos da Devassa, 1790, p. 517).
(...)
LEIS
CONSPIRADORAS
Nas páginas 494,
há um Apenso XXVIII, no qual está anexada uma obra que chega ao Rio
de Janeiro em 28.09.1788, considerada insurgente e de caráter conspiratório
pelos Autos da Devassa (p. 281). É uma cópia, em francês, da “Coletânea das
Leis Constitutivas das Colônias Inglesas Confederadas sob a denominação de
Estados Unidos da América Setentrional. Anexos: “Atos da Independência,
da Confederação e outros Atos do Congresso Geral”, traduzidos para o
inglês. Consta (p.512) que Tiradentes tinha sua própria cópia.
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