Ética republicana (coisa de artesão)

O Republicanismo é um regime que, se bem compreendido, exige que se faça um grande esforço para que sejam devidamente separados os interesses privados (econômicos, profissionais, familiares) dos interesses públicos (coletivos).
O republicanismo é muito antigo. Teve muitas experiências em povos diferentes. Nunca foi, no entanto, um regime que pretendeu eliminar governos, nem tampouco foi um ideário econômico, ou um regime que tenha pretendido colocar o povo para governar, eliminando, assim, a função de elites dirigentes. O enredo de todos os republicanos sempre girou em torno de saber qual é a melhor maneira de uma minoria governar uma maioria, preservando os bens coletivos e sem cair no autoritarismo ou no assembleísmo/“democracia” radical. As aspas pretendem lembrar que a palavra aí não está em seu sentido usual, comum. Está, isto sim, no sentido radical do termo, muito presente durante a segunda metade do século XIX e início do século XX. A democracia radical seria o regime do povo no governo e não o de minorias governantes.
Uma república não é um regime no qual o “povo governa”. Isso é a ideologia democrática em sua primeira versão. Uma república é uma forma específica de uma minoria, uma elite, governar. É uma forma de oligarquia. Entretanto, o democratismo parece ter abafado o sentido preciso do ideário republicano. E isso não sem razão, já que não é preciso muito esforço para encontrar vários pontos em comum entre eles. E também por que não é difícil identificar motivos de ordem emocional, psicológica e até cultural no ocidente para que as palavras “oligarquia” ou “elite” tenham, desde o momento em que são enunciadas, um sentido negativo, repulsivo. É o sentido de dominação injusta, excludente, desigual, de uma minoria sobre a maioria, que esses vocábulos evocam.
O republicanismo, no entanto, admite a necessidade da dominação política de uma minoria. Mas essa minoria deve governar os interesses coletivos.
Se a opção política brasileira é a de juntar Democracia com República, então optamos por algo assim: 1. o povo não vai governar. 2. tampouco haverá governo sem participação do povo. 3. O poder político será exercido por uma minoria. 4. Essa minoria não terá origem divina, nem tradicional, nem puramente carismática. Será eleita, controlada pelos governados e pelas instituições que representam os governados.
Só a junção entre Democracia e República pode explicar o que está inscrito nos regimes políticos de nosso tempo e o que nós, brasileiros, estamos tentando construir desde 1889, mas mais decididamente, a partir de 1989.
Arrisco-me a dizer que tais desejos podem ser sintetizados assim: se uma república democrática é o que queremos, significa que estamos tentando:
a) escolher uma minoria competente para cuidar de nossos interesses coletivos;
b) dar poder a essa minoria, mas não para que pensem que esse poder seja propriedade desses poucos, a ponto de transmiti-lo por herança, ou para usá-lo como extensão de seus bens particulares. A autoridade estará no Senado, nas Câmaras e Assembléias, nas prefeituras, governos e presidência, no Judiciário, no Ministério Publico, não nos sobrenomes;
c) que a minoria que governa não pense que está autorizada a fazê-lo de modo autoritário, pois os regimes republicanos sempre tiveram procedimentos especiais de diálogo entre governantes e governados, seja para eleger os governantes, seja para ouvir os governados em momentos críticos;
d) que nesse regime as leis expressem nossas decisões fundamentais, e por isso devem ser respeitadas por todos, inclusive pela minoria que governa.
e) que as leis sejam legítimas, simbolizem um acordo público, sobre um tema de interesse público, entre governantes e governados. Que seja o compromisso comum da república.
f) que nenhum governante tenha a pretensão de dizer que monopoliza a verdade. O republicanismo é um regime de checks and balances, isto é, de controles recíprocos, de construção dialogada de soluções com todas as partes interessadas e atingidas pela decisão política. Só isso pode nos tranqüilizar: saber que há quem controle os governantes, e que há meios publicamente discutidos e aceitos para impedi-los de insistir em loucuras e de responsabilizá-los, caso não respeitem nossas decisões fundamentais;
g) que não se confundam as leis de Deus com as leis dos homens. Que ninguém invoque seu Deus para justificar decisões políticas, como se a decisão fosse vontade Dele, e não do governante. Que ele nos proteja a todos, mas que nossas decisões sejam bem explicadas, comprovadas, esclarecidas. Isso vai melhorar nossa tolerância com as diferenças de crenças e de interesses.
Fazer essas idéias se transformar em prática não é nada fácil. Ainda pior é tentar isso onde a República sempre foi uma estrangeira, uma estranha.
A tarefa republicana é uma ética das coisas públicas, portanto, é um fazer diário. Todos os dias é preciso ser republicano, todos os dias é preciso impaciência com as deturpações entre interesses públicos e particulares. É assim mesmo, com jeito de artesão, que se ergue uma República. Um dia depois do outro.

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