Vinte anos depois...Constituição e democracia

A revista Foco Social enviou-me algumas perguntas sobre os 20 da Constituição da República.

Compartilho, aqui, as respostas que elaborei.

Nestes 20 anos de Constituição no que avançamos?

Vou destacar três avanços. O primeiro avanço foi a estabilidade da democracia. Nenhuma nação consegue afirmar seu sistema constitucional, por mais avançado que seja, se não houver um ambiente democrático estável e não sujeito a riscos sistêmicos. Essa é uma conquista inigualável. Nenhum estudo político consistente deixa de incluir o Brasil como um país livre e democrático. O segundo avanço importantíssimo foi a mudança de características do Supremo Tribunal Federal e sua afirmação como Corte Constitucional que atua como força política contra-majoritária, em especial pelas muitas formas de controle concentrado de constitucionalidade vigentes em nosso país. Nossa Corte Suprema tem um perfil técnico qualificadíssimo, é a melhor Corte de todos os tempos. É composta por magistrados que se dedicaram à pesquisa de direitos fundamentais, direitos sociais e teoria constitucional ao longo de toda a vida; e, diria mais, é uma Corte que se qualificou também pela presença de mulheres e de um magistrado afro-descendente, o que a torna muito mais representativa da pluralidade social brasileira. Um terceiro avanço muito importante foi a constitucionalização do direito como um todo. Atualmente a magistratura brasileira, de todos os graus, está muito mais sensível à força normativa da Constituição e ao papel que os princípios constitucionais representam no sistema de direito. Muitos avanços importantes na efetivação de direitos fundamentais ocorreram nos tribunais superiores pela aplicação direta de principios constitucionais, em especial do principio da dignidade da pessoa humana e da razoabilidade.

O que a Constituição significa para o povo Brasileiro?
A pergunta tem duas respostas. A primeira é que significa esperança. Uma Constituição é um sistema de valores, e no nosso caso, muito avançado, capaz de orientar o Brasil por muito tempo ainda. É uma Constituição que não envelhecerá. A segunda resposta é que para a geração presente dos brasileiros ela significa muito pouco. O Brasil ainda não pratica a "cultura constitucional". A educação fundamental, que é a mais acessível a todos os brasileiros, é completamente carente de educação constitucional. Um sistema constitucional forte precisa de "cultura constitucional". Enquanto a Constituição for compreendida como mais um código, entre outros, como o código do topo da pirâmide normativa do direito, ela é entendida como algo poético e elitizado. Uma Constituição democrática não pode ser estudada só no nível superior de ensino. Ela não precisa de intérpretes oficiais. Ela precisa ser aberta à interpretação da sociedade em sua dinâmica e pluralidade de interesses. Nisso não avançamos quase nada.

Vemos muitas mazelas, pobreza e má distribuição de renda o que a nossa Constituição tem a ver com isso?
Essa Constituição foi escrita como resposta a um modelo autocrático e desigual de sociedade. Seu núcleo essencial de valores abriga a liberdade, a propriedade e o pluralismo político, os direitos de primeira e segunda geração. Mas ela tem um compromisso fortíssimo com os direitos de terceira e quarta geração. Ela tem um forte compromisso com o valor social do trabalho, com a função social da propriedade, com a redução das desigualdades regionais e sociais, com erradicação da miséria. Ela foi escrita para termos um sistema de seguridade social avançado, que universalizou seus beneficiários e para desobstruir a previdência social, para tratar igualmente trabalhadores urbanos e rurais. Esse é o espírito dessa Constituição, que não está dormindo, mas que está apenas acordando para o Brasil. Ela é a Constituição de um constitucionalismo fraterno. Não podemos esquecer, jamais, as palavras do discurso de 27.07.1988, do Presidente da Assembléia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães: “Repito: essa será a Constituição cidadã, porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros, vítimas da pior das discriminações: a miséria. Cidadão é o usuário de bens e serviços do desenvolvimento. Isso hoje não acontece com milhões de brasileiros, segregados nos guetos da perseguição social. Esta Constituição, o povo brasileiro me autoriza a proclamá-la, não ficará como bela estátua inacabada, mutilada ou profanada. O povo nos mandou aqui para fazê-la, não para ter medo.”

O que ainda precisa acontecer para evoluirmos ainda mais com a nossa Constituição?
Primeiro temos de parar de tratá-la como “Lei maior”. Uma Constituição de um Estado Constitucional não pode ser reduzida a uma “Lei maior”. Essa visão explica o furor legislativo que se abateu sobre ela. São vinte anos e 56 Emendas ordinárias e 6 Emendas Constitucionais de revisão. O Brasil pensa que a atualização de uma Constituição tem de ser feita pelo Poder Legislativo Ordinário – Congresso Nacional. Tratá-la assim é tratá-la como lei, não como Constituição. Em segundo lugar, a teoria do direito precisa deixar de tratar o direito constitucional como “ramo do direito público”. Uma Constituição social como a nossa, é, sobretudo, um sistema de valores civilizatórios, plenamente integrados ao código de valores humanistas ocidentais. As Constituições sociais precisam ser compreendidas pelo viés de direitos fundamentais que asseguram, e não pela estruturação do Estado que regulam. Uma Constituição precisa ser definida e compreendida pelo núcleo essencial de princípios que abriga, que são cláusulas de eternidade, perenes e intocáveis; e não pelas suas regras de competência, estas sim sujeitas a alterações por Emenda. E, por fim, precisamos muito compreender melhor a experiência constitucional de outras nações. O estudo do direito constitucional não pode se restringir à metodologia de estudo dos códigos, vinda do século passado e muito influente no direito privado: leitura do texto escrito seguida de comentários de doutrinadores. A teoria constitucional atual é cosmopolita e essa inteligência teórica precisa se afirmar para que possamos ter melhores autores, melhores juízes, promotores, advogados e professores constitucionalistas.

A Constituição é um legado de Diretos Sociais e Garantias individuais, de que forma estes direitos podem ser adquiridos, na prática?
Avanços práticos dependem muito dos caminhos de acesso a uma justiça rápida e competente. Atualmente a busca de efetividade constitucional depende muito da tutela jurisdicional, pois o Brasil ainda não tem uma cultura política constitucional. Vide o caso do nepotismo, que exigiu a edição de uma Súmula vinculante pelo STF para pronunciar, simplesmente, o que já estava escrito na Constituição desde 1988 em relação à impessoalidade e moralidade na administração pública. Assim, já adquirimos direitos sociais importantes, nosso desafio atual é efetivá-los por meio de uma atuação responsável de todos os atores jurídicos e políticos brasileiros. Precisamos de renovação intelectual no judiciário, qualificação técnica de advogados e ministério público, além de difusão do conhecimento dos direito humanos previstos em nosso sistema constitucional.

O artigo 5º da Constituição confere os direitos fundamentais, como saúde e educação, mas por que as pessoas não lutam pelos seus direitos? Como fazer valer estes direitos?
Primeiro eu devo dizer que pesquisas recentes têm apontado que os brasileiros estão preocupados, prioritariamente, com a violência/segurança e desemprego. A saúde e a educação não são, hoje, as prioridades máximas dos brasileiros. Elas são desejos fortes, mas não estão em primeiro lugar na escala de exigências e manifestações dirigidas ao sistema político e representativo. Depois, temos de entender que as pessoas lutam pelos seus direitos, mas apenas pelos poucos que conhecem. Repito o que eu disse antes. O Brasil ainda não tem políticas públicas de capilarização da "cultura constitucional". A educação fundamental, que é a mais acessível a todos os brasileiros, é completamente carente de educação constitucional. Então a luta por direitos se restringe absurdamente. A luta por direitos, no entanto, não ocorre só no campo jurídico. Ela se dá fortemente no campo político. Muitos avanços, apesar disso, têm ocorrido na luta por direitos de terceira geração, e, por incrível que pareça, depois do direito do trabalho e previdenciário, os direitos do consumidor tem conseguido mobilizar um número impressionante de brasileiros com baixo grau de instrução formal em defesa de seus direitos. Esse movimento é benéfico e favorável a uma afirmação progressiva de outros direitos sociais, como o de saúde e educação, inscritos com direitos fundamentais na Constituição brasileira.

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